Nunca se escreveu tudo sobre os Pastéis de nata, nem vou eu, ainda, a fazê-lo. É, todavia, sempre um prazer comer um pastel de nata. Pensava eu escrever sobre as características dos pastéis e como habitualmente se degustam em provas. Quanto a esta questão, no consumo por prazer, cada um deve fazê-lo da forma que mais gostar. Mas o que faz deste doce um objeto de prazer gustativo que se prolonga por mais de cinco séculos? A resposta poderá ser fácil se lembramos apenas a subtileza da massa folhada externa e que deve ficar estaladiça, e depois o seu cremoso recheio que delicadamente escorre. É esta aparente simplicidade que faz do pastel de nata o doce mais português, e mais confecionado pelo mundo.
As origens do pastel de nata causam-me mais inquietações. Apesar de aparecer em vários registos, especialmente do começo do século XIX, não consegui, ainda, documentar-me para poder afirmar, de forma categórica, onde começaram, em que data, e como se expandiram. A sua origem remonta seguramente ao século XVI e depois percorre um caminho de aperfeiçoamentos sucessivos até chegar aos nossos dias. A sua origem conventual parece ser incontestável.
No livro A Tradição Conventual na Doçaria de Lisboa, de Carlos Consiglieri e Marília Abel, é feita uma listagem de conventos femininos de Lisboa 1833, nos quais supostamente se produziria doçaria. A receita depois apresentada não é identificada com nenhum convento. Esta receita apresenta uma parte para a massa folhada, que leva açúcar e canela, e o modo de confeção parece estranho pois junta todos os ingredientes e não aplica a manteiga em fases de laminação da massa. Depois o creme feito com gemas de ovo, açúcar, natas, leite, um pouco de farinha de trigo, sal e pau de canela.
Quando lemos com atenção o livro Arte de Cozinha… de Domingos Rodrigues, 1680, encontramos uma receita de “Pastelinhos de manjar-branco”. No final da receita escreveu: “Do mesmo modo se fazem de manjar-real ou de nata cozida”, o que nos pode levar a pensar que haveria algo que antecipava os atuais pastéis de nata.
É, de facto, no Convento de Santa Clara de Évora que encontramos a primeira receita escrita de “Pastelinhos de Natta”, no caderno manuscrito e datado de 1729. O creme é preparado com natas, gemas de ovos e açúcar, e depois colocado em forminhas de massa folhada. O caderno é assinado por Soror Mariana Leocádia do Monte do Carmo, Abadessa, e o documento original encontra-se na Torre do Tombo.
Possivelmente as primeiras referências escritas, como receitas, fazem parte de um manuscrito de 1628 e tratado no livro Alimentar o Corpo Saciar a Alma de Anabela Ramos e Sara Claro, 2013, que inclui as seguintes receitas: Nantilhos de Madrid, Pasteis de nata e Pasteis de nata de outra sorte. As receitas são pequenas e mais parecidas com receituário espanhol pois incluem pinhões e amêndoas picadas, mas não referindo a massa folhada para a caixa externa dos pasteis.
Referência a pasteis de nata são encontradas também em manuscritos em 1710 na Congregação de São Bento: “60 covilhetes de nata – 1200 reis” e na mesma congregação em 1716: “oitenta cubilhetes de nata que vierão para a festa da tresladação” (liv. 273). No Mosteiro de Miranda são também comprados 24 covilhetes de nata em 1717 e 1718.
No Brasil surge entre 1874 e 1888, um livro anónimo intitulado Cozinheiro Nacional e cuja autoria tem vindo a ser atribuída a Paulo Salles. É um livro extraordinário que faz uma compilação de receituário, modo de servir, composição de ementas, e com um grande sentido de modernidade para a época. Este livro veio “colocar nas prateleiras” as sucessivas edições de Domingos Rodrigues, e tem um receituário mais elaborado, possivelmente recolhido após a permanência da Família Real no Brasil. Pois aqui aparece o famoso “pastel de nata com” a receita que fará a segunda do parágrafo seguinte e incluída no dicionário.
Em 1892 publica-se, ainda no Brasil, um valiosíssimo livro intitulado Dicionário do Doceiro Brasileiro, do Dr António José de Sousa Rego, e que felizmente o SENAC São Paulo reeditou, em 2010, com um trabalho de organização e um estudo sobre o açúcar, e a doçaria, de Raul Lody. Curiosamente nesta publicação além-mar surgem três receitas de pastéis de nata. A primeira é um pouco confusa e parece uma massa para fazer bolinhos e usa farinha de arroz. Quanto à segunda e terceira receitas, são semelhantes mas mais esclarecidas. Na segunda, apenas refere a massa folhada, e o recheio com gemas, açúcar, natas e raspa de limão. Polvilham-se, depois de cozidos, com canela e açúcar em pó. Na terceira tem a curiosidade de fazer massa folhada com farinha, duas gemas de ovo e uma clara, banha de porco e sal. Quanto ao recheio é confecionado com leite guardado de um dia para o outro para lhe extrair as natas, açúcar em calda, uma colher de manteiga… “até chegar ao ponto de ovos-moles”, tendo possivelmente esquecido as gemas.
Carlos Bento da Maia, no seu livro Tratado Completo de Cozinha e Copa, de 1904, apresenta uma receita de “Pastéis de Nata”, cujo recheio é constituído por natas, açúcar e gemas de ovo. Sugere que “é clássico polvilhar a superfície do recheio destes pastéis, primeiro com açúcar muito fino, depois, com canela em pó.” Nada acrescenta sobre a sua origem.
Emanuel Ribeiro, no livro O Doce Nunca Amargou…, de 1923, na listagem de doces aparecem os “Pastéis de Nata” com a seguinte transcrição: “Massa de farinha, em forma de pequenina tigela, cozido no forno, contendo um creme.” E não acrescenta a receita.
Mais tarde, em 1936, é publicada a obra póstuma de António M. de Oliveira Bello, Olleboma, Culinária Portuguesa, que apresenta uma receita de pastéis de nata com uma particularidade interessante: dois recheios para servir os pastéis quentes ou frios, sendo que ambos são feitos com massa folhada.
João Ribeiro (1905-1988), o famoso chefe do Hotel Avis, também fixou o creme recheio dos pastéis de nata, no seu livro manuscrito, espécie de ajuda de memória. Este creme tinha leite, farinha, calda de açúcar e gemas de ovo. Sem natas.
Maria de Lourdes Modesto, no seu obrigatório livro Cozinha Tradicional Portuguesa, de 1982, apresenta os pastéis de nata no capítulo da Estremadura, e para o recheio: natas, gemas de ovo, açúcar, farinha, açúcar e casca de limão. Acrescenta: “Estes pastéis, que são talvez a mais importante especialidade portuguesa comercializada, podem ser servidos polvilhados com canela, e açúcar em pó.” E eu concordo completamente com esta afirmação.
Muito importante é o Livro de Receitas da Última Freira de Odivelas, publicado em 1999. Este livro é publicado com base num caderno de receitas detido pela última freira. A receita dos pastéis de nata apresenta um creme com natas, gemas de ovo, açúcar, água de flor de laranjeira e canela. No final refere: “…põe-se em forminhas”, “e nas forminhas vai ao forno”. Ora, este creme não tendo farinha, nem outros componentes que o façam adquirir uma forma cremosa, sou de parecer que as “forminhas” poderão ser de massa folhada ou outra, a exemplo de outras receitas que encontrei em cadernos onde não são dados todos os detalhes da receita, e os cadernos apenas fixavam quantidades dos ingredientes e algumas formas de executar. Também na transcrição desta receita, por Maria Máxima Vaz, não se vai mais longe, o que confirma que a receita não é bem explícita ou estará incompleta. As receitas de antigamente eram, por vezes, apenas lembretes dos ingredientes pois quem confeciona já sabia o que deveria fazer.
Poucos anos depois, 2001, em edição da Comissão Instaladora do Município de Odivelas, publica o livro Doçaria Conventual com base em receitas do espólio do Mosteiro de D. Dinis, das Bernardas do Convento de Odivelas que após a extinção das ordens religiosas, em 1834, terão começado a vender mais doçaria para o exterior a fim de angariar meios para subsistência do convento. Também aqui aparece uma receita de pastéis de nata. A massa não é folhada e parece meia areada. O recheio é obtido com açúcar, natas, gemas de ovo, água e canela. Apesar da semelhança com a receita anterior nem todos os detalhes estão ajustados.
Mais uma referência sobre pastéis de nata, encontrei no livro Sabores, Cheiros e Comeres Regionais de Mafra, da autoria de Manuel J. Gandara. A propósito do convento existente no edifício também residência Real, escreve a propósito que “Sempre que a Comunidade de Mafra comia pastéis de nata consumia: natas – 300; ovos 61 dúzias; açúcar – 56 arráteis.” É importante a nota em que afirma que no convento dedicado a “Santo António, junto à vila de Mafra, parece ter sido dos raros mosteiros a segui-lhes o exemplo, contando com uma cozinha expressamente destinada à sua confeção, denominada Pastelaria.” E a estranheza é devido a ser um convento masculino pois a tradição doceira era reservada aos femininos. Portanto é uma tradição de confecionar pastéis de nata anterior a 1834, possivelmente por abastecerem a Casa Real durante as usas estadias.
Bem, apresentei as constatações escritas sobre o pastel de natas. Continuo sem conseguir elaborar a sua árvore genealógica apesar de encontrar vários parentes. Arrisco, no entanto, a pensar que uns dos seus antepassados sejam os “Pastéis de leite”, receita número XXV do caderno de receitas da Infanta Dona Maria, muito embora a massa exterior dos pastéis ainda não seja folhada. Consta que ainda o Convento da Conceição em Beja enviava pastéis de nata para a corte no tempo de D. Manuel I que reinou entre 1495 e 1521!
Para terminar, e sobretudo para o confirmar prazer de comer pastéis de nata, vou citar Eduardo Prado Coelho que tem num texto encantador sobre esta maravilha portuguesa no livro Nacional e Transmissível, 2006. Curiosamente começa com a receita que não leva natas e leva miolo de pão e “canela dá uma sensação de conforto.” E sobre o prazer de o degustar: “Eu gosto que os pastéis fiquem bem dourados. Estaladiços, claro. A opção final é pôr canela e polvilhar com açúcar. Um pequeno requinte.” E continua, “o folhado estala entre os dedos, e sentes na sobreposição dos ingredientes a duplicidade infinita de matéria do mundo.” Mas ainda com o seu ar irónico escreve que “A literatura também se pode comer, e os poetas não se alimentam só de alpista.” Eduardo Prado Coelho, no seu estilo de prosa quase poética sintetiza o fundamental do pastel e os sentimentos ao degustá-lo. Grande elogio ao modo de ser português ou ter recebido as suas heranças.
José Dias Sanches, no livro Belém e Arredores Através do Tempos, 1940, tem várias citações sobre a alimentação no Mosteiro dos Jerónimos, citando “as marmeladas, os pastéis de nata, as compotas de fruta e tantas outras iguarias que seriam enviadas para o “Paço Real, como para as famílias abastadas dos sítios de belém e seus arredores.”
Há vários anos que tenho a honra e o prazer de presidir ao júri da Prova do Melhor Pastel de Nata de Lisboa. Iniciada em 2009 vai já na 15ª edição. Tarefa de execução rápida e que obriga a grande concentração. Mas primeiro observamos o seu aspeto. O olhar é o primeiro sentimento. Depois os dedos tocam a massa exterior e sente-se o estaladiço da massa folhada. É o primeiro reflexo para o gosto. Depois uma ligeira trincadela para perceber na boca a massa. E agora a dentada mais avançada para o creme… e depois apetece mais. Mas no concurso temos de ser prudentes. Ainda temos mais umas dúzias para provar e classificar.
Viva o Pastel de Nata. E agora aprenda a casá-lo com vinho generoso. Vá tentando até encontrar o certo para o seu paladar. Ou então continue com o pastel de nata a acompanhar o café, como eu mais gosto!
Virgílio Nogueiro Gomes