Pastéis de Nata
Nunca se escreveu tudo sobre os Pastéis de nata, nem vou eu, ainda, fazê-lo. É, todavia, sempre um prazer comer um pastel de nata. Pensava eu escrever sobre as características dos pastéis e como habitualmente se degustam em provas. Quanto a esta questão, no consumo por prazer, cada um deve fazê-lo da forma que mais gostar.
As origens do pastel de nata causam-me mais inquietações. Apesar de aparecer em vários registos, especialmente do começo do século XIX, não consegui, ainda, documentar-me para poder afirmar, de forma categórica, onde começaram, em que data, e como se expandiram.
Pastéis de nata são referidos no livro Doçaria Conventual do Alentejo, de Alfredo Saramago, com receita do Convento de Santa Catarina de Sena, em Évora, e que são feitos com massa folhada e um recheio apenas constituído por natas frescas, açúcar e gemas de ovo. Do mesmo autor, e no livro Doçaria Conventual do Norte, voltam a aparecer pastéis de nata, com receita idêntica à anterior, no Mosteiro de Arouca.
No livro A Tradição Conventual na Doçaria de Lisboa, de Carlos Consiglieri e Marília Abel, é feita uma listagem de conventos femininos de Lisboa 1833, nos quais supostamente se produziria doçaria. A receita depois apresentada não é identificada
com nenhum convento. Esta receita apresenta uma parte para a massa folhada, que leva açúcar e canela, e o modo de confeção parece estranho pois junta todos os ingredientes e não aplica a manteiga em fases de laminação da massa. Depois o creme feito com gemas de ovo, açúcar, natas, leite, um pouco de farinha de trigo, sal e pau de canela.
Ainda nos escritos de doçaria conventual, no livro Doçaria dos Conventos de Portugal, de Alfredo Saramago e Manuel Fialho, são apresentados dois pastéis de nata: um do Convento de Arouca e outro do Convento de Santa Clara de Évora. Em relação ao primeiro é sugerido que a massa folhada fosse muito fina. O creme do recheio é muito semelhante, nos dois casos, e usa apenas os três ingredientes fundamentais: açúcar, natas e gemas de ovo. É, de facto, do Convento de Santa Clara de Évora que encontramos a primeira receita escrita de «Pastelinhos de Natta», no caderno manuscrito e datado de 1729. O creme é preparado com natas, gemas de ovos e açúcar, e depois colocado em forminhas de massa folhada. O caderno é atribuído a Soror Mariana Leocádia do Monte do Carmo, Abadessa.
Possivelmente as primeiras referências escritas como receitas fazem parte de um manuscrito de 1628 e tratado no livro Alimentar o Corpo Saciar a Alma de Anabela Ramos e Sara Claro, 2013, que inclui nas seguintes receitas: «Nantilhos de Madrid», «Pasteis de nata» e «Pasteis de nata de outra sorte». As receitas são pequenas e mais parecidas com receituário espanhol pois incluem pinhões e amêndoas picadas, mas não referindo a massa folhada para a caixa externa dos pasteis.
Referência a pasteis de nata são encontradas também em manuscritos em 1710 na Congregação de São Bento: 60 covilhetes de nata – 1200 reis e na mesma congregação em 1716: «oitenta cubilhetes de nata que vierão para a festa da tresladação (liv. 273)». No Mosteiro de Miranda são também comprados 24 covilhetes de nata em 1717 e 1718.
No Brasil surge entre 1874 e 1888, um livro anónimo intitulado Cozinheiro Nacional e cuja autoria tem vindo a ser atribuída a Paulo Salles. É um livro extraordinário que faz uma compilação de receituário, modo de servir, composição de ementas, e com um grande sentido de modernidade para a época. Este livro veio «colocar nas prateleiras» as sucessivas edições de Domingos Rodrigues, e tem um receituário mais elaborado, possivelmente recolhido após a permanência da Família Real no Brasil. Pois aqui aparece o famoso pastel de nata com a receita que fará a segunda do parágrafo seguinte e incluída no dicionário.
Em 1892 publica-se, ainda no Brasil, um valiosíssimo livro intitulado Dicionário do Doceiro Brasileiro, do Dr António José de Sousa Rego, e que felizmente o SENAC São Paulo re-editou, em 2010, com um trabalho de organização e um estudo sobre o açúcar, e a doçaria, de Raul Lody. Curiosamente nesta publicação além-mar surgem três receitas de pastéis de nata. A primeira é um pouco confusa e parece uma massa para fazer bolinhos e usa farinha de arroz. Quanto à segunda e terceira receitas, são semelhantes. Na segunda, apenas refere a massa folhada, e o recheio com gemas, açúcar, natas e raspa de limão. Polvilham-se, depois de cozidos, com canela e açúcar em pó. Na terceira tem a curiosidade de fazer massa folhada com farinha, duas gemas de ovo e uma clara, banha de porco e sal. Quanto ao recheio é confecionado com leite
guardado de um dia para o outro para lhe extrair as natas, açúcar em calda, uma colher de manteiga… «até chegar ao ponto de ovos-moles», tendo possivelmente esquecido as gemas.
Carlos Bento da Maia, no seu livro Tratado Completo de Cozinha e Copa, de 1904, apresenta uma receita de «Pastéis de Nata», cujo recheio é constituído por natas, açúcar e gemas de ovo. Sugere que «é clássico polvilhar a superfície do recheio destes pastéis, primeiro com açúcar muito fino, depois, com canela em pó.» Nada acrescenta sobre a sua origem.
Emanuel Ribeiro, no seu livro O Doce Nunca Amargou…, de 1923, na listagem de doces aparecem os «Pastéis de Nata» com a seguinte transcrição: «Massa de farinha, em forma de pequenina tigela, cozido no forno, contendo um creme.» E não acrescenta a receita.
Mais tarde, em 1936, é publicada a obra póstuma de António M. de Oliveira Bello, Olleboma, Culinária Portuguesa, que apresenta uma receita de pastéis de nata com uma particularidade interessante: dois recheios para servir os pastéis quentes ou frios, sendo que ambos são feitos com massa folhada.
João Ribeiro (1905-1988), o famoso chefe do Hotel Avis, também fixou o creme recheio dos pastéis de nata, no seu livro manuscrito, espécie de ajuda de memória. Este creme tinha leite, farinha, calda de açúcar e gemas de ovo. Sem natas.
Maria de Lourdes Modesto, no seu obrigatório livro Cozinha Tradicional Portuguesa, de 1982, apresenta os pastéis de nata no capítulo da Estremadura, e para o recheio: natas, gemas de ovo, açúcar, farinha, açúcar e casca de limão. Acrescenta: «Estes
pastéis, que são talvez a mais importante especialidade portuguesa comercializada, podem ser servidos polvilhados com canela, e açúcar em pó.» E eu concordo completamente com esta afirmação.
Muito importante é o Livro de Receitas da Última Freira de Odivelas, publicado em 1999. Este livro é publicado com base num caderno de receitas detido pela última freira. A receita dos pastéis de nata apresenta um creme com natas, gemas de ovo, açúcar, água de flor de laranjeira e canela. No final refere: «…põe-se em forminhas», «e nas forminhas vai ao forno». Ora, este creme não tendo farinha, nem outros componentes que o façam adquirir uma forma sólida, sou de parecer que as forminhas poderão ser de massa folhada ou outra, a exemplo de outras receitas que encontrei em cadernos onde não são dados todos os detalhes da receita e os cadernos apenas fixavam quantidades dos ingredientes e algumas formas de executar.
Poucos anos depois, 2001, em edição da Comissão Instaladora do Município de Odivelas, publica o livro Doçaria Conventual com base em receitas do espólio do Mosteiro de D. Dinis, das Bernardas do Convento de Odivelas que após a extinção das ordens religiosas, em 1834, terão começado a vender mais doçaria para o exterior a fim de angariar meios para subsistência do convento. Também aqui aparece uma receita de pastéis de nata. A massa não é folhada e parece meia areada. O recheio é obtido com açúcar, natas, gemas de ovo, água e canela. Apesar da semelhança com a receita anterior nem todos os detalhes estão ajustados.
Em 2018 surge nova transcrição por Maria Máxima Vaz, do caderno manuscrito, com o título Doces do Mosteiro de Odivelas, com confeção detalhada do creme que vai cozer em forminhas sem especificar se são de massa folhada.
Mais uma referência sobre pastéis de nata, encontrei no livro Sabores, Cheiros e Comeres Regionais de Mafra, da autoria de Manuel J. Gandara. A propósito do convento existente no edifício também residência Real, escreve a propósito que «Sempre que a Comunidade de Mafra comia pastéis de nata consumia: natas – 300; ovos 61 dúzias; açúcar – 56 arráteis.» É importante a nota em que afirma que no convento dedicado a «Santo António, junto à vila de Mafra, parece ter sido dos raros mosteiros a segui-lhes o exemplo, contando com uma cozinha expressamente destinada à sua confeção, denominada Pastelaria.» E a estranheza é devido a ser um convento masculino pois a tradição doceira era reservada aos femininos. Portanto é uma tradição de confecionar pastéis de nata anterior a 1834, possivelmente por abastecerem a Casa Real durante as usas estadias.
Bem, apresentei as constatações escritas sobre o pastel de natas. Continuo sem conseguir elaborar a sua árvore genealógica apesar de encontrar vários parentes. Arrisco, no entanto, a pensar que uns dos seus antepassados sejam os «Pastéis de leite», receita número XXV do caderno de receitas da Infanta Dona Maria, muito embora a massa exterior dos pastéis ainda não seja folhada.
Para terminar, e sobretudo ao prazer de comer pastéis de nata, vou citar Eduardo Prado Coelho que tem num texto encantador sobre esta maravilha portuguesa no livro Nacional e Transmissível. Curiosamente começa com a receita que não leva natas e
leva miolo de pão e «canela dá uma sensação de conforto.» E sobre o prazer de o degustar: «Eu gosto que os pastéis fiquem bem dourados. Estaladiços, claro. A opção final é pôr canela e polvilhar com açúcar. Um pequeno requinte.» E continua, «o folhado estala entre os dedos, e sentes na sobreposição dos ingredientes a duplicidade infinita de matéria do mundo.» Mas ainda com o seu ar irónico escreve que «A literatura também se pode comer, e os poetas não se alimentam só de alpista.» Eduardo Prado Coelho, no seu estilo de prosa quase poética sintetiza o fundamental do pastel e os sentimentos ao degustá-lo. Grande elogio ao modo de ser português ou ter recebido as suas heranças.
Há vários anos que tenho a honra e o prazer de presidir ao júri do Concurso dos Pastéis de Nata de Lisboa. Tarefa de execução rápida e que obriga a grande concentração. Mas primeiro observamos o seu aspeto. O olhar é o primeiro sentimento. Depois os dedos tocam a massa exterior e sente-se o estaladiço da massa folhada. É o primeiro reflexo para o gosto. Depois uma ligeira trincadela para perceber na boca a massa. E agora a dentada mais avançada para o creme… e depois apetece mais. Mas no concurso temos de ser prudentes. Ainda temos mais uma dúzia para provar e classificar.
Viva o Pastel de Nata. E agora aprenda a casá-lo com vinho generoso, ou outro. Vá tentando até encontrar o certo para o seu paladar. Ou então continue com o pastel de nata a acompanhar o café como eu mais gosto!
Virgílio Nogueiro Gomes